Cap. 01:

Conto de Salém como (Seguir)

Parte da série OS FILHOS DA LUA

Capítulo I

Como era ridiculamente simples causar-lhes dano.

De cima, ele os via caminhar pela rua deserta. Seus olhos escuros eram firmes, atentos. O macho humano estava tão distraído com o flerte e com sua fêmea, que não teria chance de protegê-la contra o Mal, caso fossem surpreendi­dos por uma ameaça. E se saltasse do alto sobre eles de onde estava, no alto de um poste de luz?

Entretanto, nesse caso o termo "surpreendido" não seria uma palavra adequada para descrever a situação. E a questão em tomo de poder ou não se defender também era fútil e absurda. Um humano contra um individuo de sua espécie?

Jacob, O "Defensor", sufocou uma risada sardônica.

A mulher ruiva fizera uma escolha pobre, em sua opinião.

Nenhum homem de respeito teria encorajado a parceira a sair numa noite tão proibitiva. Questões místicas à parte, a rua que percorriam era conhecida por sua péssima reputação. Sombras ameaçadoras mudavam de lugar, transportando com elas perigos desconhecidos para os simples sentidos humanos. Nuvens dançavam no céu e brincavam com a luz incerta da lua.

O casal continuava caminhando pela rua, seguindo seu passeio sem perceber a presença camuflada.

E ainda havia a aproximação do outro.

Jacob inclinou a cabeça, acompanhando com atenção e cautela os movimentos do outro ser, ainda distante da cena. As características de aço e concreto plantado pela mão humana na cidade representavam um obstáculo para os aguçados e favorecidos sentidos do Defensor, mas ainda assim, ele podia acompanhar com facilidade o progresso daquele que se aproximava. O Demônio, mais jovem e inexperiente, comportava-se com descuido, focado como estava no objetivo.

A fêmea humana.

Jacob reconhecia a voracidade, a fome do jovem Demônio, sentindo-a como uma sucessão de ondas opressoras e pungentes, como O almíscar que marcava a luxuria incontrolável. O jovem Demônio, Kane, esse era seu nome, entrava e saia de sua existência sólida enquanto se aproximava da ruiva. Sua fixação o tomava singularmente obstinado e obtuso para tudo que o cercava. Ele não tinha idéia de que O Defensor O perseguira, de que esperava resoluto por seu próximo ato.

Kane surgiu de repente na calçada, em meio a uma explosão de nuvens de fumaça, exalando o cheiro forte e característico do enxofre. Ele se mantinha alguns metros atrás do casal de desconhecidos, e O transporte não fora notado, apesar da exibição incauta e ate um pouco vaidosa.

Jacob esperou, sentindo a tensão afetar to do O seu sistema nervoso. Experimentava uma forte urgência que O impelia a interferir, mas era seu dever deixar o outro seguir seu caminho, assumir O compromisso com seu curso. Só então teria a justificativa para impor sobre ele, as leis de seu povo. Durante todo o tempo, ele clamava ao destino para que Kane recuperasse O controle e se afastasse dali.

Enquanto dava ao outro uma última chance para mudar de idéia, Jacob permanecia sentado como uma estatua de pedra, observando Kane seguir pela rua percorrida recente­mente pelo casal. Quando ele passou por baixo do Defensor, ainda despercebido e empoleirado sobre o poste de luz, e fez menção de aproximar-se da presa para o ataque final, Jacob se lançou no ar num salto leve e flutuante que O levou diretamente do alto do poste a calçada. Não houve nenhum som quando seus pés tocaram O metal frio, nenhum farfalhar das roupas que o cobriam quando ele aterrissou numa demonstração de equilíbrio perfeito, graça e agilidade. O único sinal revelador de sua presença foi o repentino movimento da luz, como uma vela tremulando. E ainda assim, Jacob levou apenas um momento para compensar a alteração, fazendo os outros lá embaixo perceberem a movimentação como uma ocorrência normal, embora, na realidade, a luz continuasse brilhando e se projetando com progressivos espasmos de protesto.

Ele também mantinha os pensamentos ocultos sob sua camuflagem projetada. Sabia que, mesmo domina do por aqueles instintos mais selvagens e primitivos, Kane o sentiria se não se protegesse. Porem, um sussurro abafado no fundo de sua mente suplicava para que cometesse um erro. Só uma vez. Só desta vez. Um pequeno erro, murmurava a voz, e Kane, tão querido e importante para você, sentira sua presença e seus pensamentos. Deixe-o ter a chance que negou a tantos outros.

Ninguém jamais saberia o que Jacob sacrificava para calar esse sussurro persistente e envolvente. Por mais forte que fosse a voz e a vontade de segui-la, não podia ignorar seu dever.

Assim, em vez de cometer O erro, ele viu Kane usar seus poderes contra o vulnerável casal. De repente, o macho humano se virou e caminhou para longe da morra, abandonando-a sem nenhuma razão e sem explicar por que O fazia, sem sequer ter consciência do que fazia. A ruiva girou sobre os calcanhares, encarando o Demônio que se aproximava. Ela era linda. Jacob notou sua beleza quando ela se voltou para a luz. Tinha longos e abundantes cabelos ruivos que desciam por suas costas como uma cascata de caracóis. Era fácil entender por que ela havia atraído Kane. E não foi O Defensor em Jacob que permitiu que um breve e tremulo sorriso brincasse com os cantos de sua boca.

Kane aproximou-se da ruiva, completamente confiante em seu poder sobre ela, e estendeu a mão para tocar o rosto de traços delicados. Jacob via o brilho fascinado nos olhos da moça, a manipulação de sua mente tomando-a dócil e submissa, convencendo-a a oferecer o rosto a caricia aparentemente afetuosa.

O afeto era uma mentira. O que começaria com uma gentileza não terminaria da mesma maneira. Era a natureza das criaturas de sua raça, e era inevitável. Por isso não podia dar a Kane mais um aviso alem das centenas... Não... Milhares que já havia dado antes dessa noite.

Jacob já havia visto o suficiente.

Ele saltou no ar com incrível leveza, o corpo alongado agia descrevendo um arco para trás e realizando vários saltos ate aterrissar atrás da bela mulher ruiva sem produzir nenhum som. Descartou a camuflagem tão rapidamente, que Kane sobressaltou-se e arregalou os olhos. Ele ficou como que paralisado ao ver Jacob, e o mais velho deduziu quais poderiam ser os pensamentos do jovem Demônio.

O Defensor estava ali para puni-lo.

Pensar nisso foi suficiente para fazer Kane engolir em seco numa visível demonstração de me do e apreensão. Ele afastou a mão do rosto da ruiva como se os dedos queimas­sem, e sua concentração foi interrompida, libertando-a do encanto. Ela piscou, percebendo subitamente que se encontrava entre dois homens desconhecidos e num lugar onde nem sabia como havia chegado.

- Mantenha o controle sobre sua mente, Kane. Não tome a situação ainda pior apavorando-a.

Kane obedeceu imediatamente, e a jovem relaxou, sorrindo como se estivesse na agradável companhia de velhos amigos, completamente em paz.

- Jacob, o que o fez sair de casa numa noite como essa?

Jacob não se deixou distrair pela conversa aparentemente casual de Kane ou por sua inútil tentativa de salvar as aparências, fingindo uma calma que estava longe de sentir. O Defensor já sabia que o rapaz não tinha maldade em seu coração. Kane ainda era relativamente imaturo e destreinado e, considerando as condições daquela noite em especial, era fácil para ele se deixar desencaminhar por sua natureza mais primitiva.

Mas isso não mudava os fatos com que lidava nesse mo­mento. Kane havia sido pego com a mão na massa. Literalmente. Sua reação sobressaltada e imediata era tentar encontrar uma via de fuga, uma maneira de escapar da punição que sabia ser iminente. Ele começaria com uma tentativa de humor e continuaria utilizando todas e cada uma das ferramentas em seu arsenal.

- Você sabe por que estou aqui - respondeu Jacob, anulando essas ferramentas sem nenhuma dificuldade, empregando um tom frio e disciplinado que prevenia Kane contra o perigo de testar sua paciência.

- Talvez eu saiba, Kane concordou, seus olhos azuis e escuros buscando O chão enquanto as mãos sumiam dentro dos bolsos da calça.

- Eu não ia fazer nada. Estava apenas... Inquieto.

- Entendo. Estava inquieto, e então pensou em seduzir essa mulher para passar O tempo e acalmar sua agitação? - Jacob perguntou sem rodeios, cruzando os braços sobre O peito, numa atitude que radiava uma aparente severidade, Como se ele censurasse uma criança difícil. Era um pensa­mento divertido, considerando que Kane estava prestes a entrar em seu segundo século de vida. Mas a questão era seria demais para que Jacob pudesse rir.

- Não ia machucar a mulher - protestou Kane. Jacob sabia que Kane acreditava mesmo nisso.

- Não? - ele devolveu. – E o que ia fazer? Perguntar educadamente se poderia despejar sobre ela a selvageria de sua natureza?

Kane guardava um silencio teimoso. Sabia que Jacob lera suas intenções desde o primeiro momento, quando começara a perseguir a presa. Argumentos e negativas só tomariam a situação ainda pior. Alem do mais, a evidencia incriminadora de sua transgressão estava bem ali, em pé entre os dois.

Por um momento breve e apaixonado, os pensamentos de Kane foram invadidos por nítidas imagens mentais do que poderia ter sido ainda mais incriminador. Ele conteve um arrepio, uma resposta pecaminosa, e os olhos buscaram discretamente a mulher que, serena, continuava parada diante dele. Se Jacob tivesse sido um pouco menos perfeito em sua irritante mania de cumprir o dever que lhe fora atribuído, se chegasse meia hora mais tarde...

- Kane, esse e um momento difícil para nosso povo. Você e tão suscetível a esses impulsos básicos quanto qualquer outro Demônio - Jacob disse com determinação implacável. - Mesmo assim, faltam apenas dois anos para completar dois séculos de vida e se tomar um adulto. Não acredito que me tenha obrigado a sair atrás de você como se fosse um adolescente sem controle sobre O próprio corpo Pense no que eu poderia estar fazendo, se não estivesse aqui salvando você de si mesmo.

Os traços angulosos de Kane se tingiram de vermelho em conseqüência da vergonha que Jacob depositava intencionalmente a seus pés. A reação era prova de que sua consciência voltava a funcionar, que seu senso de moralidade, sempre tão inatacável, encaminhava-se para a plena restauração.

- Sinto muito, Jacob. Realmente - ele disse por fim, dessa vez com sinceridade, não como um truque para tentar desarmar o Defensor.

Jacob podia ate testar a sinceridade das palavras, pois, ele havia parado de olhar para a ruiva como se esperasse vê-la servida numa bandeja de prata.

A presença dinâmica do Defensor estabilizava seus princípios, e Kane ia percebendo que colocara Jacob numa posição difícil, insustentável, chegando a ponto de, talvez, prejudicar O relacionamento entre eles. Sua garganta estava oprimida pelo remorso.

Era um sentimento tão poderoso quanto o medo que crescia em seu peito. Raiva por traído à santidade das leis de seu povo, e a punição para essa infração - era grave. Um castigo que fazia toda uma espécie prender a respiração e recuar sempre que O Defensor se aproximava. De repente, Kane podia sentir nitidamente O peso da posição de Jacob, essa percepção acentuava O pesar a ponto de sentir uma dor física no peito.

- Quero que mande essa mulher de volta para casa em segurança e certifique-se de apagar tudo que aconteceu aqui de suas lembranças. Não quero que ela se lembre de seu péssimo comportamento - Jacob instruiu com tom contido enquanto assistia ao tumulto de emoções no rosto de Kane. - Depois, quero que vá para casa. Sua punição vai ficar para mais tarde.

- Mas eu não fiz nada! - Kane reagiu num impulso apavorado.

- Teria feito, Kane. Não piore as coisas mentindo para você mesmo. Só vai conseguir se convencer de que sou O vilão que todos acreditam que sou. E isso só nos trará sofrimento.

Kane reconheceu a verdade e experimentou uma nova onda de culpa. Suspirando com determinação, fechou os olhos e concentrou-se por um segundo. Momentos mais tarde, O rapaz que acompanhava a ruiva retomava com passos leves e um sorriso radiante no rosto.

- Ei, onde você se meteu? Virei a esquina, e de repente você não estava mais do meu lado!

- Desculpe. Acho que me distrai com alguma coisa e não percebi que nos afastamos, Charlie.

Charlie segurou o braço da acompanhante e, sem notar a presença dos dois Demônios tão próximos deles, afastou-se da cena.

- Muito bom - Jacob aprovou, olhando para Kane com ar aliviado. O jovem Demônio estava se tomando eficaz com o amadurecimento.

Kane suspirou, a voz soando triste como se tivesse sofrido uma terrível perda.

- Ela e tão linda! Viu aquele sorriso? Tudo em que conseguia pensar era como eu queria vê-la sorrindo quando... Corou e olhou para o Defensor. - Jacob, nunca pensei que isso aconteceria comigo - confessou. - Precisa acreditar em mim.

- Eu acredito. - Jacob hesitou por um momento, deixando claro pela primeira vez, que essa havia sido uma terrível missão para ele, por mais que houvesse projetado segurança e firmeza. - Não se preocupe, Kane. Sei quem você realmente e. Sei como essa maldição e difícil, como temos de nos empenhar para combatê-la. Agora - ele retomou O tom profissional -, por favor, volte para casa. Abram está esperando por você.

Dessa vez Kane não cedeu a trepidação que ameaçava dominá-lo. Controlava-se pelo bem de Jacob, pois sabia como a situação o afetava profundamente, embora ele guardasse seus pensamentos com cuidado, impedindo-o de lê-los.

-Jacob, cumpra seu dever como teria feito com qualquer outro. Eu saberei entender.

Kane se despediu do Defensor com um rápido movimento de cabeça, um gesto que revelava proximidade e, ao mesmo tempo, respeito inabalável. Depois de olhar em volta e certificar-se de que não era observado, ele explodiu numa nuvem de enxofre e fumaça, transportando-se para longe dali.

Jacob ficou parado na calçada por longos momentos, seus sentidos atentos até ter plena confiança de que Kane realmente havia voltado para casa. Não seria novidade um Demônio tentar fugir e esconder-se por medo de ser punido. Mesmo assim, Kane seguia o caminho que lhe fora indicado, demonstrando mais uma vez sua boa intenção.

Jacob olhou para trás, para o fim da rua, onde O casal havia desaparecido. Nunca deixava de espantar-se com a total falta de instintos do ser humano. Apesar de todo o avanço tecnológico e cientifico de sua civilização, eles haviam perdido algo de grande valor quando abriram mão de suas intuições selvagens. Aquela mulher viveria eternamente ignorante sobre o quanto estivera próxima de um terrível perigo. Encontrar um Demônio desgarrado a sombra de uma lua amaldiçoada, era algo que nenhum mortal deveria desejar.

Jacob libertou-se do domínio da gravidade e ergueu-se no ar, causando apenas uma leve brisa com seu deslocamento. Seu corpo alongado e atlético cortava a noite como uma lâmina afiada e cintilante. Ele passou flutuando por edifícios, causando a oscilação da intensidade de luz produzida por algumas lâmpadas da via publica. Depois de subir alguns metros, sumiu no céu claro da noite.

Ali Jacob hesitou. Parou para estudar a lua brilhante com uma apreensão que não conseguia evitar. Era sempre assim semanas antes e semanas depois da lua cheia de Beltane, na primavera, e da lua de Samhain no outono. Essas datas eram sagradas para os Demônios, mas, ao mesmo tempo, era o centro da maldição que os afligia. A inquietação entre os de seu povo só se tomaria pior na próxima semana, quando ocorreria a lua cheia. Haveria mais fugas entre os jovens e adultos. Ate os anciões teriam seu controle seriamente tentado.

Jacob havia sido escolhido para o papel de Defensor por uma razão. Ele era um exemplo de controle. Até o Demônio monarca era considerado mais suscetível a loucura da lua cheia do que ele, e isso era muito, considerando que em seus quatrocentos anos como Defensor, Jacob nunca fora chama­do para conter Noah, o Rei dos Demônios.

Jacob era grato por isso. Os poderes de Noah eram uma força que preferia não ter de enfrentar. O rei não conquistara sua posição por direito de herança ou laços de sangue, como acontecia com os soberanos da história dos humanos, mas por sua capacidade de liderança e pé a superioridade de seu poder.

Jacob iniciou O vôo de volta entretido com pensamentos filosóficos. Como fora que Noah o escolhera? Só um líder corajoso podia fazer a melhor escolha, mesmo sabendo que um dia poderia se arrepender dela.

Noah ergueu os olhos da leitura, sentindo a energia da aproximação de Jacob muito antes de ele entrar por uma janela alta na forma de uma leve chuva de poeira. Observou o recém-chegado, que agora flutuava sobre O piso em sua forma sólida. Jacob retomou sua relação com a força da gravidade lentamente, descendo com a graça fluida que estava sempre presente em seus movimentos naturais.

O rei permanecia sentado, seu corpo de proporções impressionantes preenchendo completamente a mol dura de carvalho da cadeira de espaldar alto. Enquanto Jacob se valia do poder da agilidade e da velocidade, Noah prevalecia pela força física e pela imponente musculatura. Era fácil perceber sua estrutura larga e forte sob a calça de montar e a camisa de seda que realçava os ombros imponentes. Noah tinha um estilo próprio de elegância, que era demonstrada na atitude relaxada e na maneira como ele mantinha as per­nas cruzadas apoiando um tornozelo sobre O joelho. Ele continuou sentado por mais alguns instantes, observando atentamente O Defensor.

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