2ª T. Cap. 02:

Conto de Salém como (Seguir)

Parte da série OS FILHOS DA LUA

San Jose, Califórnia, tempo atual

Damien se virou ao sentir alguém muito perto. O movimento repentino fez a trança na altura de sua nuca estalar como um chicote contra a lateral do pescoço.

A escuridão era completa. A ausência da lua criava a impressão de que um pesado manto negro cobria a paisagem. As lâmpadas das ruas, espaçadas demais umas das outras no subúrbio da Califórnia, não eram suficientes para penetrar a escuridão.

Mas Damien não se importava com aquilo. Pelo contrário. Era seu ambiente natural, pois ele possuía sentidos aguçados que funcionavam melhor à noite. Mesmo assim, alguma coisa o incomodava.

Não era um ser humano que se aproximava, confiante. Humanos normais não podiam chegar tão perto sem que ele os notasse. Tentou adivinhar quem, ou o que, o seguia.

Primeiro, tinha de determinar se a perseguição era proposital ou acidental. Meneou a cabeça. Tudo que desejava aquela noite era participar de uma boa caçada e depois voltar para casa em paz. Mas, para desfrutar dessa tranquilidade, não podia ter inimigos.

Infelizmente, vampiros tinham muitos inimigos. E o príncipe normalmente tinha dez vezes mais que o número comum à maioria deles. Sem mencionar a política externa, os humanos intrometidos e outras raças de Nightwalkers, os vampiros tinham a irritante tendência de disputar a liderança uns com os outros. A maioria sabia que não devia desafiá-lo, mas sempre havia um ou outro que superestimava a própria capacidade e tentava depor o vampiro real de seu trono. Viviam em uma sociedade na qual a sobrevivência dos mais fortes estava no centro de muitas motivações. No caso do trono, ela determinava quem lideraria a espécie.

Damien se tornara príncipe havia séculos derrotando o monarca anterior. Mas seu antecessor era um canalha e havia merecido a decapitação ritual, pensou, esperando que seu perseguidor o alcançasse.

Já sabia que o perseguidor não era um vampiro. Para isso, só tivera de ajustar as pequenas membranas ocultas na anatomia de seus olhos. Essa membrana dava a ele a capacidade de visualizar uma aura brilhante que variava com a quantidade de calor que um corpo desprendia.

Vampiros não tinham uma circulação natural, mas retinham o calor do corpo das vítimas entre uma alimentação e outra, e podiam manter sua temperatura, desde que se alimentassem a cada vinte e quatro horas. Porém, a falha nesse sistema era que as extremidades, como dedos das mãos e dos pés, perdiam esse calor artificial mais depressa. Sendo assim, em sua percepção visual, um vampiro que ainda não tivesse se alimentado teria o efeito de um alvo desenhado. Peito e coração seriam o centro brilhante, por concentrarem mais calor, mas esse círculo estaria cercado por outros numa progressão de cores, vermelho, laranja e rosa, até pés e mãos se tornarem praticamente imperceptíveis à visão de calor, misturando-se à temperatura do ambiente.

Um vampiro que já tivesse caçado seria de um vermelho uniforme, diferente de um humano, que formava uma série em constante transformação composta por branco e diferentes tons de vermelho. Os níveis de calor humano estavam sempre se alterando com o movimento, o esforço, a doença ou a excitação, e havia um período perceptível de tempo antes de o corpo compensar essas mudanças, nivelando-as de alguma forma. Porém, os que tinham olhar mais aguçado e maior conhecimento podiam determinar com facilidade a diferença entre um vampiro aquecido e um mortal, especialmente após um ou dois séculos de prática.

Quem o seguia não era humano ou vampiro. Mas era um Nightwalker capaz de dar ao corpo a temperatura desejada, ou, mais especificamente, um demônio. A raça era famosa por sua temperatura corporal vários graus mais baixa que todas as espécies existentes no planeta. O corpo que se protegia nas sombras atrás dele tinha temperatura bastante baixa.

As espécies dos Nightwalkers eram aquelas que viviam apenas na noite, ocultas de uma variação ampla de efeitos negativos causados pelo sol. Dentre essas espécies, os demônios eram a segunda menos provável a causar sofrimento ou representar perigo para o príncipe vampiro. Demônios eram reconhecidamente morais e reservados, focando-se neles mesmos e na própria política de constante controle da raça, e não saíam de seus domínios para causar problemas em outros locais.

Normalmente. Problemas ocorridos recentemente tornavam tudo possível.

Podia ser um habitante das sombras. Os seres pequeninos e ardilosos eram os mestres da camuflagem. Equivalentes ao camaleão, eles causavam sempre grande aborrecimento. Tinham pouca ou nenhuma estrutura política, perambulando em clãs ou agremiações religiosas, frequentemente causando mais perturbação e problemas do que deveriam. Eram como crianças rebeldes importunando os Nightwalkers, brigando entre si, e usando os mortais como brinquedos por pura diversão.

Damien compreendia o encanto existente nisso. Também se envolvera com mortais em sua juventude.

Bem, talvez juventude fosse força de expressão.

Honestamente, ainda era capaz de brincar com as raças que o cercavam, se fosse adequado à sua disposição. Ele riu. Gideon, um velho demônio e amigo, já o acusara de ser um intrometido cósmico, e não podia dizer que a acusação era inteiramente mentirosa.

Antes de se convencer de que o demônio em questão também era um amigo, precisava reverter as posições na perseguição e surpreendê-lo.

Inesperadamente, a sombra deixou o esconderijo e caminhou em sua direção. Abordagem direta. Isso significava apenas duas coisas: incrível estupidez ou admirável ausência de medo. Adaptando a visão para estudar o rosto daquele que se aproximava, percebeu que a resposta, nesse caso, era a coragem.

— Noah! — exclamou, deixando as sombras para ir ao encontro do rei dos demônios.

Noah sorriu e apertou a mão estendida.

— O que o traz aqui, tão longe de casa? — Damien perguntou. Noah vivia na Inglaterra, muito longe da Califórnia, onde ele atualmente estabelecera seu território.

— Vim tratar de negócios. E peço desculpas por ter chegado bem na hora do jantar — ele brincou.

Damien fez um gesto indicando que não tinha importância, e o grande rubi no anel em seu dedo médio brilhou.

— Tudo bem. Eu ainda nem havia escolhido a presa.

— Eu percebi — confessou Noah.

O rei era um demônio do Fogo. Todos os demônios tinham um poder decorrente da afinidade com um determinado elemento do mundo natural que os cercava e compunha. O fogo era o mais volátil e impressionante desses elementos. Como tal, Noah podia sentir padrões energéticos e, após seis séculos de vida, tinha prática suficiente para saber se ele já possuía um alvo para o jantar daquela noite.

Noah conquistara seu trono, como Damien, mas fora escolhido por eleição por sua força inquestionável e sua evidente capacidade de liderança. O rei anterior tivera de morrer para que a sucessão pudesse acontecer. E ele havia morrido de causas naturais, porque os demônios reprovavam luta ou morte entre eles mesmos embora, sendo basicamente imortais, raramente ocorria um episódio de morte natural em qualquer uma das raças da noite.

Normalmente, o fim era decorrente de assassinato. Nesse caso, porém, um demônio não seria eleito rei depois de ter assassinado o antecessor. Os demônios consideravam grave afronta matar um monarca.

Noah jamais poderia ser destituído de seu posto. O Grande Conselho o elegera, mas não podia depô-lo. A morte seria a única maneira de substituí-lo. Em tempos menos civilizados, se o Conselho decidisse ter cometido um engano, haveria uma trama de assassinato para promover a substituição do rei.

Por outro lado, nenhuma raça de Nightwalkers era inteiramente civilizada. Damien acreditava que isso jamais ocorreria.

— Que tipo de negócios? — Damien convidou o soberano a caminhar ao seu lado.

— A biblioteca.

— Ah, sim. Não esqueci. O que você quer?

— Para ser bem objetivo, estudiosos da sua sociedade. Não temos a intenção de manter ocultos os mistérios contidos nessa Biblioteca Nightwalker. Trata-se de uma coleção universal de muitas histórias das raças da noite. Não voltamos ao local desde que ele foi descoberto nas cavernas do território licantropo. O povo de Siena também não voltou lá. — Noah sorriu ao mencionar o nome da rainha licantropo que se casara recentemente com o comandante do exército dos demônios. Elijah, o capitão guerreiro, era estimado pelo governante. — Nós... Quero dizer, Siena e eu decidimos que seria justo convidarmos os vampiros para integrar esse grupo de estudiosos que vai começar a pesquisar a importância daquele lugar. Como nenhum de nós jamais esteve lá antes e todo o material foi compilado das linguagens das raças Nightwalker, é justo que cada uma dessas raças tenha uma chance de conhecer o conteúdo daquele material. Chances iguais para todos.

— É muito justo, realmente, mas não preciso lhe dizer que meu povo não é do tipo erudito. Com exceção da nossa estrutura política e da minha corte muito compacta, somos uma nação de tribos. Funcionamos em grupos pequenos e independentes, nos preocupamos basicamente com a alimentação, evitando os caçadores humanos e buscando sensualidade. Se não podemos consumir, matar ou celebrar com um determinado objeto, ele não nos interessa.

Noah riu. As palavras de Damien descreviam de maneira resumida basicamente todas as raças de Nightwalkers. Mas o rei dos demônios sabia que os vampiros eram a representação mais pura desse estereótipo. O tédio dos vampiros era algo assustador. Quando não estava entretido ou distraído, um vampiro podia causar grande comoção. Mas Damien tinha sua maneira bem peculiar de policiar a espécie. Atualmente, seus súditos não escapavam ao controle como no passado. O príncipe havia amadurecido.

— Se eu mandar algum interessado — ele prosseguiu —, esse indivíduo certamente terá motivos escusos. Talvez queira estudar essa estranha biblioteca para conseguir poder. Não há nada que um vampiro aprecie mais do que poder. Se mandar alguém que não tenha interesse, certamente só vai atrapalhar. Prefiro obter todas as informações pertinentes por você mesmo, Noah. Os estudiosos demônios e licantropos são os melhores para esse tipo de tarefa.

— Eu sabia que essa seria sua decisão, mas achei melhor vir perguntar. E fico surpreso por não demonstrar nenhum interesse pessoal.

— Pelo contrário, estou ardendo de curiosidade. Uma biblioteca com livros em variados idiomas de muitas raças de Nightwalkers tem implicações intrigantes. A que considero mais intrigante é como conseguimos permanecer no mesmo aposento pelo tempo necessário para pensarmos em construir esse lugar, e ainda enchermos todas aquelas prateleiras. Tudo isso sugere histórias tão antigas que nem nós, os mais velhos, conhecemos. É uma situação que flerta com a ideia de que nós, os Nightwalkers, podemos ter origens comuns das quais nem suspeitamos. E também abre a possibilidade de contrariar os elitistas puristas existentes em todas as raças, arrogantes preconceituosos que somos. Resumindo, isso vai causar problemas.

— E eu sei o quanto você gosta de problemas.

— Admito que tem razão. — Damien riu. — Tenha certeza de que irei dar uma espiada no seu trabalho de vez em quando. Além disso, Horatio será instruído a comparecer às reuniões e informar-se de todas as descobertas. Ele me manterá informado.

— Horatio? Desde quando diplomatas são bons estudiosos? A história e os dados registrados são factuais demais para eles! Para Horatio, tudo seria material de propaganda.

— Ainda assim, ele já integra sua corte. Isso facilita a interação. E também há Kelsey. Ela está na corte de Siena no momento. Com a ajuda dos dois e minhas visitas ocasionais, sei que terei uma boa ideia do progresso das pesquisas.

— Muito bem, mas não deixe de me avisar se mudar de ideia.

— Eu raramente mudo de ideia.

— Eu sei. — Noah parou e estendeu a mão. — Obrigado por ter me ouvido, Damien. Espero que compareça à cerimônia de nomeação.

— Quando sua irmã terá a criança?

— Em um ou dois meses. Normalmente, uma fêmea de demônio tem gestação de treze meses completos, mas Gideon sente que a criança está ansiosa para nascer. Como Magdalegna também está ansiosa pelo fim da gravidez, não tenho dúvida de que terei mais um sobrinho em breve.

— Transmita a ela minhas felicitações. Horatio me informará sobre o nascimento.

Noah assentiu, acenou, e desapareceu numa espiral de fumaça que permaneceu por alguns instantes onde antes estivera o homem alto e de ombros largos, antes de subir ao céu e se perder na noite.

Sozinho, Damien voltou a pensar no jantar.

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