A calmaria antes da tempestade

Conto de J.N.S. como (Seguir)

Parte da série Ligados ao Passado

Nuno entrou abruptamente na sala do Coordenador do Hospital, não ouve batida ou chamada prévia de sua parte, assustando assim, a pessoa que estava dentro da sala, que parou imediatamente de preencher os papéis que estavam sobre sua mesa.

- Por qual motivo a minha solicitação para levar o paciente Ender Aiyra, sob meus cuidados não foram atendidos? Até onde eu sei, tanto você quanto o diretor deste hospital estavam mais que inclinados a aceitarem opção hoje pela manhã – enquanto falava os olhos de Nuno transmitiam toda sua fúria com aquela situação.

- Sr. Reynard... – O Coordenador entrelaçou seus dedos sobre os papeis que estava assinando e olhou Nuno diretamente nos olhos, adotando uma expressão tão feroz quanto a que via. Ele era um homem velho, já havia lidado com quase todo tipo de gente em sua vida, um rapaz aparentemente tão mimado como Nuno não poderia colocar medo nele – Simplesmente não há a possibilidade de decidir de uma hora para a outra que irá assumir a responsabilidade por determinado paciente, e querer transferi-lo para sua residência por mais bem equipada tecnologicamente que ela possa ser. Além disso, é impossível concordar que você se ausente por uma semana inteira sem ter alguém para substituí-lo no seu plantão.

- Creio que esteja equivocado quanto a isso. Assim que realizei a solicitação já informei que havia conseguido alguém para me substituir. Portanto, não existem empecilhos, a meu ver.

Nuno era uma pessoa que prezava pela compostura e elegância, sempre foi taxado como “soberbo”, devido ao seu ar de indiferença com relação às pessoas que mostravam ter comportamentos negligente ou mal educado. Contudo, ele se tornava exatamente o que odiava quando perdia sua paciência.

- Muito bem, deixe-me explicar... Se ausentar notificando a coordenação uma hora antes de fazê-lo é inadmissível. Hoje, pelo que sei, é seu dia de plantão. Você optou pelo regime de 24 horas. Dessa forma, visto que você chegou às sete horas, seu plantão terminará às sete horas do dia seguinte. Sabe muito bem que teria que ter informado muito tempo antes que iria se ausentar no meio do seu plantão para que o hospital pudesse realocar alguém para substitui-lo. Além de que, a menos que tenha algum outro médico plantonista para trocar o plantão com você, não poderá se ausentar até concluir sua carga horária e passar seu plantão ao próximo. Acredito que tenha visto isso quando estudou o Código de Ética?

Por um momento o Coordenador acreditou que tinha conseguido uma vitória e que esse assunto estava encerrado, principalmente quando ele viu a expressão de desanimo que Nuno havia expressado em seu rosto. Não era a primeira vez que os dois se confrontavam, mas essa foi a que ele mais se sentiu seguro de poder quebrar esse “pequeno espinho”. Quando estava prestes a pegar sua caneta e voltar a assinar seus documentos novamente, ele ouviu uma leve risada e soube que o inferno estava apenas começando a pegar fogo.

- Engraçado mencionar o Código de Ética para mim. Sabe? Realmente eu o estudei, tenho-o quase que memorizado..., mas o ponto em questão é que, em nenhum dos parágrafos e incisos me dizem que o desvio de verba seja autorizado, e que aparelhos e medicamentos podem ter suas notas fiscais alteradas. Mas claro! Isso não seria de grande relevância, já que este é um hospital privado – Nuno descruzou seus braços e colocou suas duas mãos sobre a mesa olhando profundamente nos olhos do Coordenador, que se assemelhava muito a um buldogue – Porém, a história seria diferente se seu “amado” irmão soubesse que o está roubando, não? Me diga? É realmente difícil ver que seu irmão, que é 20 anos mais novo, se deu tão bem na vida, enquanto a única coisa em que você conquistou foram quilogramas a mais? – Enquanto dizia essas palavras, Nuno não piscou os olhos um único segundo, queria aproveitar ao máximo a sensação de poder subjugar alguém tão facilmente, então ele continuou – Acho que sim, até por que se você não fosse tão... Fracassado? Mau administrador? Ruim em todos os sentidos? Não sei como usar um adjetivo que se encaixe em você, mas... Enfim... Se assim não fosse, seu pai não teria deixado mais de 80% dos bens para seu irmão mais novo, não é?... “Besteira, não sabe do que está falando”, isso é algo provável que esteja pensando, mas e se eu dissesse que tenho provas e testemunhas? Claro, poderia ser um blefe, mas estaria disposto a arriscar todo o esquema que armou para roubar seu próprio irmão?

Nuno viu que todo seu discurso não havia surgido efeito no homem a sua frente, durante toda sua vida ele sempre foi muito bom em fazer com que os outros se convencessem de que o “modo certo” era o dele. Todos tem certa “parte podre” em seus corações, essa era uma das suas, ser meticulosamente manipulador quando lhe interessava.

Para que o Coordenador finalmente sentisse suas palavras e o quanto Nuno o tinha em suas mãos, ele decidiu proferir um único nome, então movimentou seus lábios, formando sílaba por sílaba o temido nome, mas sem produzir um único som

– Bar-to-lo-meu.

O Coordenador ouviu cada palavra em silêncio, ele estava estagnado, não conseguia acreditar que um moleque, com cerca de 40 anos a menos que ele, estava tentando o encurralar. Era cômico demais para que ele assimilasse a ferocidade que Nuno depositou em cada palavra. Contudo, com essa palavra formada por lábios silenciosos, ele arregalou seus olhos e começou a suar frio, enquanto um enorme embrulho se formava em seu estômago.

Quando viu a reação que o causou, ele se controlou ao máximo para ainda manter um ar sério. Todavia, não conseguiu manter o rosto inexpressivo por um longo tempo e permitiu que um sorriso se formasse em seus lábios. Mal sabia ele, que foi justamente esse sorriso um tanto quanto, sádico, que fez com que o Coordenador desistisse de qualquer saída que pudesse pensar para não se humilhar a ter que aceitar a solicitação de Nuno.

- Muito bem! Peço que fique por mais 4 horas, que oficializarei sua substituição... – O Coordenador falava enquanto folgava a gravata em seu pescoço com uma mão e com a outra estendia para alcançar o telefone.

Antes que alcançasse, Nuno pôs sua mão em cima do telefone.

- Uma hora, é tudo que tem. Estou terrivelmente cansado e anseio por um banho o quanto antes – Sem mais nada a falar, ele se endireitou e caminhou até a porta do escritório com um ar triunfante. Antes de girar a maçaneta, ele olhou para trás e disse – Você não perdeu para mim hoje, você perdeu para si próprio. Aliás, você perderia para qualquer um desde que sua autoconfiança foi destruída após ver que seu irmão o superou sem dificuldades onde você falhou miseravelmente.

Sem dizer mais nada, abriu a porta e saiu, deixando no velho homem, um grande buraco, não de medo ou raiva, somente um buraco, que somente podia ser preenchido com inveja e rancor que ele alimentaria por um longo tempo, até poder revidar.

“Preferiria que ele tivesse me subordinado ao invés de jogar isso na minha cara, um homem de 60 anos sendo repreendido por um tão jovem chega a ser mais repugnante que ceder a uma chantagem”

Buscando aproveitar o pouco tempo restante no hospital, Nuno procurou por Nívea para que pudessem conversas um pouco. A julgar pela hora e pela calmaria que estava no ambiente da emergência, ela só poderia estar em um local, a cafeteria que fica na praça de alimentação.

Não demorou muito para que ele chegasse e a encontrasse. Seus cabelos curtos e grisalhos eram inconfundíveis. Ele acalmou sua respiração e caminhou lentamente e direção a mesa que ela estava sentada. Aproveitando que ela ainda não o tinha visto, ele tentou se aproximar por trás com o objetivo de retribuir alguns sustos que ela já havia dado nele.

Se aproximou calmamente, e quanto mais perto chegava, mais lento seus movimentos ficavam, quando estava perto o suficiente, ao ponto de esticar seu braço e alcançar as costas dela, ele parou de repente.

- Você ainda vai precisar de mais uns seis anos para conseguir me assustar usando uma prática que é minha, meu garoto! – Nuno abaixou o braço que havia levantado, expressando sua derrota. Então, deu a volta e sentou-se na cadeira da mesa em que ela estava tomando um café e comendo uma torta de limão.

- Achei que quanto mais velho ficássemos, mais surdos estaríamos, parece que eu estava errado – Nuno esticou seu corpo, fazendo seus pés aparecerem do outro lado da mesa, cutucando os pés de Nívea.

- Tirando os métodos de salvar vidas, você está sempre errado! – Nívea falou de forma convencida enquanto enfiava um pedaço de torta na boca.

- Há! Há! Há! Muito engraçado de sua parte... E muito humilde também, parabéns para você! – Ele falou de forma irônica.

- Parece que o humor de alguém está instável... Não conseguiu a dispensa? Beatriz mencionou algo quando a encontrei antes dela ir embora.

Nuno arregalou seus olhos e levantou suas sobrancelhas, mostrando seu espanto

- Uau! As habilidades de Beatriz em receber e passar notícias é surpreendente. Cada vez me convenço mais da ideia de que ela espalhou vários pontos eletrônicos pelos corredores do hospital. Não é possível alguém tão pequena possa saber da vida de tantas pessoas assim.

Nívea não conseguiu se conter e riu. Sua risada era incrivelmente serena, daquelas que envolve a pessoa fazendo com que quem a escute, comece a rir também. Até mesmo Nuno, em seu pior estado de humor, não conseguia resistir a risada dela.

- Realmente! Acho que ela seria bem capaz disso... Ela sempre foi assim desde que era pequena, quer dizer, bem mais... pequena – Nívea era tia de Beatriz, poucas pessoas sabiam disso, Nívea era do tipo que não falava de trabalho em casa e nem de casa no trabalho. Somente um grupo seleto sabia da relação sanguínea das duas.

- Nuno! Gostaria de um café hoje? – Nuno e Nívea olharam de forma sincronizada para uma jovem garçonete, com um sorriso tímido, mas sensual, dirigido somente a Nuno.

“Coitada, caiu nos encantos dele” – Nívea pensou, assim que viu aquele sorriso bobo e aqueles olhos cheios de desejo – Bem, eu vou me retirar e voltar ao meu posto, nunca se sabe quando vai acontecer alguma coisa. Ponha o café e a torta na minha conta Laura – Nívea levantou-se e sorriu para os dois.

- Obrigado Laura! Mas não quero nada hoje, já vou para casa, só vim aqui para dar algumas instruções a minha antiga instrutora – Nuno sorriu de forma maliciosa com a piada que vez com Nívea de forma a mostrar que o jogo virou e que agora ele estava no comando.

- Ohh! tudo bem... então... achei que hoje era seu plantão, acho que me enganei...

- Não, você esta certa, mas surgiram uns imprevistos e terei que me ausentar – Ele se levantou e se espreguiçou, elevando seus braços, como já havia trocado seu uniforme por uma roupa casual, foi inevitável que sua camisa subisse mostrando um pouco de seu abdomên definido e as linhas de sua cintura que levavam a uma região perigosa – Então vou indo. Vamos Nívea? Depois passo aqui para comer uma de suas tortas – ele sorriu e deu uma piscada para a garçonete.

Quando estavam a uma distância segura, Nívea o olhou com o canto do olho e disse:

- Você deveria se envergonhar de estar fazendo isso com ela. Será apenas mais uma na sua teia, se não quer nada sério com ela, por que ficar flertando?

- Gosto de me sentir desejado – Nuno sorriu.

Nívea balançou a cabeça de forma negativa, para ela, Nuno era alguém extremamente gentil, mas ele em alguns momentos mostrava traços que não agradavam a todos que estavam ao seu lado. Esses traços apareciam principalmente, quando era algo relacionado à sua beleza, habilidades e inteligência, que para ela, poderiam ser traduzidos como ego, orgulho e arrogância.

- Nuno Reynard, você já tem 27 anos, não está em idade de ser tão infantil, faça-me um favor e cresça! – Nuno inspirou rapidamente e parou de sorrir, ele sabia muito bem o que seu nome chamado daquela forma significava.

- Desculpe, era só uma brincadeira, não farei novamente – Ele falou, expressando uma pureza em suas palavras que não eram verdadeiras.

- Assim, espero... Afinal pelo que me lembre você está comprometido com alguém. Não é mesmo?

- Sim... – ele falou em um tom baixo.

- Por que esse desânimo? Já acabou com mais um relacionamento? Quanto tempo durou dessa vez?

- Não terminou... ainda. É só que... não sei. Tenho sentimentos confusos por Hyang, apesar de gostar da companhia dele, não sei se gosto realmente dele. Entende? – Nuno falou demonstrando uma aflição incomum.

- Sou uma pessoa simplista, então não entendo essa situação. Se você está com ele e se sente bem, então é porque você gosta dele. Não existe mistério nisso. Talvez você só não queira ter um relacionamento com ele, porque já ame outra pessoa e ainda não percebeu.

- Talvez...

- Agora, sobre o que iria “instruir-me” – ela fez claras e extravagantes as aspas no ar, para demonstrar sua ironia.

- Ahh! Sim! Sobre alguns pacientes... – Nuno passou cerca de 20 minutos falando sobre os pacientes que necessitavam de algum cuidado extra.

Após ter repassado para Nívea todas as recomendações que ele tinha, Nuno se dirigiu para o estacionamento para pegar Rubeos. Após checar se estava tudo bem, ele subiu, ligou e se dirigiu até a portaria para esperar pela ambulância que levaria Ender para sua casa. Antes mesmo de ir até a coordenação “conversar” para liberarem sua ausência, ele já havia informado o número de sua conta bancária para que Lyandriam fizesse a transferência das despesas que o hospital teve com Ender. E ele havia feito uma nota mental para agradecer a ela depois, por ter sido tão ágil quanto ao pagamento.

Enquanto esperava, ele começou a repassar todas os requisitos que tinha estabelecido para que pudesse levar Ender para sua casa, contando em seus dedos.

“Aprovação de transferência, confere; solicitação do transporte, confere; medicamentos emergenciais, confere; ligar para Amaya preparar tudo, confere; avisar ao Hyang sobre minha ausência no que havíamos combinado... Droga, essa eu esqueci”

Nuno pegou seu celular e rapidamente discou o número de seu namorado. As expectativas de que fosse atendido logo, eram quase inexistentes, a julgar pelo horário, devia ser o momento mais movimentado no restaurante. Porém ele se surpreendeu quando após o terceiro toque, uma voz familiar atendeu.

- Oi Nuno, o que quer?

- Oi Hyang. Está muito ocupado?

- Mais ou menos...

- Imaginei que estaria. Então, depois eu ligo novamente quando o movimento diminuir um pouco mais.

- Eu não estou no restaurante. Hoje, é o dia do casamento do meu irmão. Esqueceu? Eu te avisei antes de ontem.

- Nossa! Esqueci totalmente. Me desculpa.

Hyang suspirou, tentando ao máximo evitar que uma tristeza imensa preenchesse seu coração.

- Tudo bem... – ele flou com uma voz baixa – Você virá ainda assim?

- Desculpe! Estou indo para a chácara agora mesmo. Mais tarde eu te conto os detalhes do motivo. Porém queria avisar que vou ficar por lá por cerca de uma semana ou mais.

Hyang ficou em silêncio por um tempo, ainda atônito com o que ouvira.

- Eu achei que a gente fosse sair amanhã. Já tinha feito as reservas no restaurante de um amigo e comprado os ingressos para aquele show que você queria ver.

- Sim. Eu sei, mas infelizmente surgiram alguns empecilhos. Podemos remarcar?

- Nuno... – Hyang parou de falar por um momento.

Ao fundo, Nuno ouvia um som de uma porta sendo aberta e uma voz infantil chamando Hyang.

“Tio Hyang, papai está te chamando. Ele quer ajuda com os convidados. Tio por que você está chorando?”

“O tio não está chorando! Só tem muita poeira aqui. Estou conversando com um amigo, assim que terminar eu vou”

Ao terminar de falar essa frase, Hyang se dirigiu novamente a Nuno.

- É... Tudo bem então... Depois conversamos, tenho que ir agora...

- Hyang? Realmente, me desculpe, não foi minha intenção te magoar, não tive como evitar essa situação.

Por mais estranho que pudesse parecer, saber que Hyang estava chorando e que ele era o culpado causava em Nuno uma certa inquietação que ele não entendia muito bem. Somado a isso, o fato de ser mencionado apenas como um amigo comum avisa mexido com seu ego de uma forma que não compreendia. No fundo, ele queria que Hyang tivesse falado que estava falado com o seu namorado.

Ele ficou esperando que Hyang falasse algo que o confortasse, como estava habituado, mas não houve resposta. Quando afastou o telefone e olhou para a tela, ele viu que a chamada ainda estava acontecendo, mas antes que pudesse falar mais alguma coisa, ele viu que Hyang desligou. Com isso, uma onda de emoções começou a aflorar em seu peito, e o impulso de ligar mais uma vez começou a parecer tentador demais para ser ignorado. A única coisa que o conteve foram as luzes da ambulância que se aproximavam de onde ele estava.

Quando confirmou que era a ambulância que levaria Ender para sua casa, ele colocou o celular no bolso e ligou sua moto. E assim ele seguiu em direção a sua casa de verdade. Por mais que ele gostasse do apartamento que ficava apenas a 40 minutos do hospital, ele não sentia que pertencia aquele lugar. O local que ele amava e que era a exteriorização de sua alma, ficava cerca de 1h20min da cidade.

Ele ia para lá somente em quatro ocasiões distintas, a primeira quando era questão de doença, a segunda quando tinha férias, a terceira quando algum de seus familiares distante o visitava e a quarta era para visitar seus “melhores amigos”.

O caminho era inspirador, as luzes emitidas pela cidade contrastavam com o azul-escuro do céu e o barulho que o mar produzia a cada onda que banhava a praia. Não que ele pudesse ouvir muita coisa devido ao barulho da cidade, mas sua imaginação era boa o suficiente para criar luzes em lugares escuros, criar sons em meio ao completo desarranjo e criar sensações, mesmo tendo um coração indelével.

Por um tempo, se estabeleceu um padrão de sinais de cor verde, vermelho, amarelo e verde novamente repetiam-se consecutivamente. A cada parada, ele virava a cabeça para ver se a ambulância ainda estava lá. No fim desse padrão, na última vez que olhou para trás e verificar se a ambulância estava lá, sentiu uma leve coceira em algum local de sua mente. Não era uma coceira do tipo que você passa as unhas sobre a pele no exato local e a coceira passa, era uma coceira que quanto mais ele tentava saciar, mais ela crescia.

Já deixando a cidade, ele seguiu por um caminho que beirava a praia de um lado e planícies com uma casa aqui ou ali do outro. Nuno percebeu, que essa coceira ainda cresceria mais nos próximos seis dias, ele sabia que essa coceira era algo familiar, algo que estava despertando depois de um longo tempo adormecido. Porém, ele evitou ficar pensando nisso por muito tempo, na realidade, ele estava com receio de pensar demais sobre isso e se deparar com uma verdade que não queria lidar no momento.

Algum tempo depois, ele abandonou o caminho ao lado da praia, pegando um desvio, onde só se podia ver uma planície coberta de vegetação da mais variada com árvores, arbustos e gramíneas. Um pouco ao longe, se podia ver um tom mais escuro e mais denso, que limitava sua visão, mas ele sabia exatamente o que era aquela imagem. Uma floresta que se estendia até alcançar montanhas, começando a se erguer gradualmente até fazer parecer que as montanhas eram grandes árvores. Aos poucos, Nuno foi se aproximando de seu destino, adentrando na escuridão, como se estivesse entrando em outro mundo.

Quando chegou de frente a um portão negro feito de ferro, ele parou a moto e desceu com um pouco de dificuldade, apesar de a parte superior de seu corpo estar protegida do frio com uma jaqueta e um par de luvas, suas pernas não tinham a mesma proteção, sendo somente a calça jeans para impedir que o frio se agarrasse em seus ossos. Ele caminhou de forma dura, até o portão enquanto procurava pela chave em seu bolso.

Demorou cerca de um minuto até que a ambulância o alcançasse, quando ela chegou onde ele estava, os portões estavam abertos e ele esperava do lado. Após a ambulância passar ele encostou os portões, mas sem fechá-los. Não estava a fim de ter que voltar para trancar, optando por deixá-los abertos até a equipe que estava na ambulância retornar.

Ainda tinha cerca de 100 metros para ser percorrido do portão até chegar à sua casa, esses foram os 100 metros mais longos de sua vida, quando ligou sua moto, um pensamento inundou sua mente.

“Não acredito que vou cuidar dele por seis dias. Na minha própria casa. No meu próprio quarto. Nem que Lyan estará aqui. Nem que os três irão se reunir. E muito menos que não avisei absolutamente nada ao Hyang e que o magoei... Não sei como essa situação poderia ficar pior do que está”.

Nuno seguiu em piloto automático até chegar à garagem de sua casa. Ao guardar sua moto, ele a cobriu com uma capa e foi ajudar com a maca para levar Ender para dentro de casa. Na porta, uma figura branca e pálida estava à espera, quando Nuno a viu, demorou um pouco para reconhecê-la.

- Sra. Amaya! Quanto tempo não te vejo! – Ele subiu os degraus que levavam a varanda da casa. Ao chegar próximo a ela, ele a cumprimentou no típico modo japonês, colocando as mãos ao lado do corpo e curvando-se para frente.

Ela sorriu ao ver o gesto – Nuno! Estou muito feliz em vê-lo, anseio a muito tempo pelo seu retorno – Ela retribuiu o gesto e logo após o puxou para um abraço.

Sayo Amaya, era uma típica senhora japonesa que desde muito tempo, era presente na vida de Nuno, ela tinha longos cabelos prateados e uma estatura pequena, magra e curvada que deixava claro sua idade avançada. Ela trabalhou por muito tempo na casa de seus pais, e cuidou dele enquanto eles trabalhavam. Na vida de Nuno ela se colocou como uma avó, ou obassan, como ela o havia habituado a chamar quando era pequeno.

Eram praticamente, família, e mesmo após ela ter se aposentado e retornado ao Japão por um tempo, sua filha Yoshie, deu continuidade ao trabalho na casa de Nuno, e ela optou por retornar e ficar com a filha e netos.

Nuno estava profundamente feliz em ver Amaya novamente. Contudo, havia alguém que precisava ainda mais de sua atenção, sendo assim, ele deu um beijo na testa enrugada de Amaya e afastou-se um pouco do seu abraço.

- Amaya, preciso ajudá-los com a maca, estarei com um convidado por alguns dias, assim que o acomodar e deixá-lo confortável, conversamos melhor – Ele pegou nas mãos magras dela – Por que não vai preparando um daqueles seus chás? Assim que terminar chego na cozinha e conversamos enquanto tomamos e comemos torradas igual a antigamente, o que acha?

Amaya apertou as mãos de Nuno e sorriu.

– Sim! Estou indo e vou esperá-lo na cozinha. Não demore – Após dizer isso ela apoiou-se na sua bengala e saiu a passos lentos entrando na casa e indo em direção a cozinha.

Nuno a viu caminhar com um aperto no peito, pensando se logo, logo, esta seria mais uma de suas perdas. Sem pensar mais sobre isso para não reviver pessoas mortas em sua mente, ele desceu as escadas e ajudou a checar se Ender estava bem fixado na maca, seu colar cervical, soro e demais equipamentos. Após estar tudo certo, ele, o motorista e mais dois técnicos de enfermagem o levaram escada acima, em direção ao começo do momento em que a vida de Nuno, mais uma vez, sairia de seu controle.

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