João e Miguel #1

Conto de jorgeneto como (Seguir)

Parte da série João e Miguel

“Esse sapato já está bem desgastado. Não poderia ir a um lugar como esse com ele. Ah, ninguém irá reparar em meus pés mesmo, afinal, provavelmente, não conheço ninguém ali.”- João pensa enquanto desce do ônibus e atravessa a rua, rumo ao teatro. Haveria um recital ali naquela noite. O clima estava como ele gosta, havia um ventinho leve que lhe tocava o rosto e o fazia se sentir bem. Mais abaixo estava o teatro da sua cidade, novinho em folha e, talvez só nos olhos de João, brilhava. Ele gostava daquele lugar.

“Será que estará cheio? Acho que não, nessas coisas nunca tem muita gente. Se fosse uma peça de teatro, talvez. Mas um recital, ainda de uma artista daqui mesmo. Eh, o teatro não vai encher.” – mais uma rua atravessada, enfim, no seu destino. Sim, o teatro já estava cheio, João se enganou.

Vestido com a camisa branca que tanto gosta, sua calça azul e o sapato desgastado preto, João passava mesmo despercebido, não havia ninguém ali que o conhecesse. Seus poucos amigos não gostavam das mesmas coisas que João. Arte, música clássica, cinema francês, fotografia P&B, canto lírico, ninguém que ele conhecia gostava disso. Seus pais não entendem, seus irmão também não. Seus tios e primos muito menos. Aqueles que conheciam essas coisas todas, não conheciam a João. Pode-se imaginar que ele se sentia sozinho, talvez perdido.

“19:00hs. Pelo anuncio, agora que começará a distribuir os convites. Acho que tenho chances, mesmo já tendo esse tanto de gente aqui. Como estão bem vestidos! Não deveria mesmo ter vindo com esse sapato. A camisa é linda, mas amassada desse jeito. Agora que vi, senão tinha a passado com o ferro.”

- Boa noite! – sorriu para a moça que estava no balcão e que também sorria. - Dois convites para a apresentação de hoje.

- Sinto muito, mas todos os convites foram distribuídos. – a moça disse e continuou sorrindo.

- Como assim, acabou? Agora que deveria estar começando a distribuir os convites, pelo horário anunciado.

- Não há convites agora, mas sempre colocam outros à disposição. Se quiser, pode ficar aqui, que logo teremos mais. Você quer só um convite?

- Dois, por favor. Uma amiga está a caminho. – disse já se recostando no balcão, frustrado por não ter chegado mais cedo e sem saber por que mentiu. Não havia ninguém a caminho. A verdade é que estar sempre sem companhia o incomodava.

Tomado por esses pensamentos e perdido no meio daquelas pessoas que enchiam a antessala, João não percebeu o “boa noite” dito por um rapaz alto, nunca visto antes. Apesar de nunca ter sido formalmente apresentado à ninguém daquele lugar, ele conhecia a todos, alguns até mesmo por nome, por estarem sempre nos eventos no teatro. Então, não, ele não conhecia o rapaz que o cumprimentava. Parecia até ser de outra cidade.

- Boa noite. Tudo bem? – disse, sentindo-se um pouco sem graça – e retribuiu o sorriso do rapaz que também sorria.

- Você viu a moça que estava aqui distribuindo os convites?

- Ela estava aqui há uns minutos. Deve ter entrado, mas já volta.

- Ah, sim. Eu volto daqui a pouco, então... Ou melhor, será que você poderia entregar esse convite para ela? Peguei para um amigo, mas ele acabou de me ligar dizendo que não vem. De repente, serve para alguém.

- Serve para mim. – João riu. – Ainda não tenho convite. Já se esgotaram.

- Aqui está. Consegui mais convites. – disse a atendente se aproximando do balcão onde João continuava encostado.

- Muito obrigado, mas não preciso mais. Já consegui o meu. – João falou mostrando o ingresso dado pelo rapaz que ainda estava ali.

- Mas você não queria dois?

- Dois? Ah, não! Minha amiga não poderá vir mais, então, só preciso desse convite mesmo. Muito obrigado, de novo.

- Por nada. – a moça disse já saindo apressada.

E o rapaz continuava lá. E sorria. João sorria também. João sempre sorria. Um sorriso de indecisão, mas um sorriso verdadeiro.

- Pelo jeito, nós dois levamos um “bolo”. Que coincidência! Não queria assistir sozinho.

- Nem eu. Apesar de vir aqui quase sempre sozinho. Meus amigos não gostam muito de música clássica, de teatro e essas coisas todas.

- Entendi. Mas pelo menos hoje, temos a companhia um do outro. Ou não?

João ficou surpreso, mas tratou logo de dizer sim, afinal, ele sempre estava sozinho naquele teatro. Não iria desperdiçar a oportunidade de ter alguém do lado para comentar algo, que seja um errinho bobo da menina enfadonha lá no fundo do palco.

O rapaz alto, sorridente, com ares de cidade grande chamava Miguel. E não era dali mesmo. Vinha da capital para fazer um mestrado na faculdade local. Estava morando na cidade há 02 meses e, como disse para João rindo, ainda haveria 01 ano e 08 meses para irem naquele teatro e em todos os outros eventos de arte que houvesse e os interessasse. Além da sua formação em História, era apaixonado por fotografia, juntou grana por dois anos para comprar sua câmera profissional e a levava para qualquer canto, inclusive estava com ela a tiracolo, João percebera naquele momento. Morava com alguns amigos que conhecera na época da faculdade, vendia suas fotos pela internet e escrevia artigos para alguns sites e assim sobrevivia. Tudo isso João soube em pouco mais de 15 minutos antes de começar o recital. Miguel falava, João escutava e os dois sorriam. Não como se fossem velhos conhecidos. A principio, não eram em nada parecidos. João ainda estava no ensino médio, usava as roupas que sua mãe comprava, tinha no rosto algumas espinhas e carregava os conflitos da adolescência. Pode ser que os sonhos mais secretos eram iguais e aí estava o motivo para se entenderem em minutos. Não dava pra saber nem entender naquele momento, mas a identificação foi instantânea. Os dois perceberam isso.

Fim do recital. Bach, Beethoven, Manoel Bandeira, Franz Kafka, entre outros músicos, poetas e artistas. Os dois sentaram juntos e entre palmas, alguns assovios, risadas e olhares de soslaio, eles se divertiram muito.

- Cara, eu adoro Vivaldi e a Primavera ficou muito bonita com aquele violinista. – Miguel comentou enquanto caminhavam para o ponto de parada, onde João pegaria o ônibus.

- Sou suspeito para falar de Vivaldi, é meu músico preferido. Mas entre “As Quatro Estações” prefiro o Inverno. Lembro-me da primeira vez que ouvi e me emocionei tanto. Foi assim várias outras vezes e não entendia. Eu chorava ouvindo, ainda mais no Inverno. Até que um dia, lendo sobre Vivaldi, descobri que ele fez tentando representar as emoções sentidas em cada estação.

- Essa é a explicação para tanto choro, então. – Miguel riu – Eu não chorei quando ouvi a primeira vez. Não que eu lembre. Mas eu achei genial e ainda acho.

- Ele foi um gênio mesmo.

- Com certeza!

Deram alguns passos em silêncio. Será que terminara todos os assuntos? Será que a identificação foi coisa momentânea e já havia passado?

João já estava se incomodando com o silêncio, mas não conseguiria fazer nada. Tinha medo de falar algo pior que o silêncio incômodo. Ele, um jovem cheio de sonhos, mas que saiu da cidade onde nasceu poucas vezes, mal conhecia a capital, lugar de onde sua recém-encontrada companhia viveu até poucos meses atrás, onde fez faculdade, onde viveu o dobro de anos que João tem. João não entendia sequer como Miguel deu atenção a um adolescente e como ainda estavam conversando. Alguém tinha que romper o silêncio, mas não poderia ser João.

- E, o que você faz aos domingos? – Miguel disse, aliviando a tensão que o silêncio pode trazer entre pessoas que acabaram de se conhecer e assim João sorriu agradecido.

- Então, geralmente, fico em casa com minha família, leio, ouço música... Nada que eu não faça também nos outros dias.

- Ah, sim. Eu vou, na parte da manhã, naquele parque legal que muita gente vai aos fins de semana.

- Legal! Às vezes eu também vou lá.

- Então, vamos amanhã comigo. Eu pensei em sair daqui caminhando, tirando algumas fotos até lá e depois voltar, se tivermos muito cansados, de ônibus. O que você acha da ideia?

- Sim, podemos ir. Gosto muito desses programas. Onde a gente se encontra e que horas?

- Eu não sei onde você mora, mas eu moro aqui perto na rua de cima. Pelo que já percebi da cidade, é um lugar central. Você poderia passar lá e a gente pegava essa avenida toda, tirando foto das coisas interessantes até chegar lá no parque onde dá pra fazer umas fotos legais também. Precisamos ir cedo, umas 7:30hs. Pode ser?

- Que tal 7:45? É que dependo de ônibus, então, só consigo chegar aqui esse horário.

- Está ótimo! Aproveitando que você vai até minha casa, irei te apresentar alguém que acho que você vai gostar. De repente, ela até vai com a gente.

João não gostou muito da ideia. Ele tinha que superar a vergonha para falar com Miguel, imagina com mais outra pessoa. A verdade era que, mesmo gostando de gente inteligente e disposta a sempre ensinar algo, essas pessoas também o intimidavam. Mesmo com menos vontade de ir ao passeio no outro dia, João disse que tudo bem. A noite tinha sido legal. Miguel tinha sido legal e, como disse várias vezes, tinha adorado a companhia de João, ele não iria estragar tudo agora. Além do mais, ele sempre quis conhecer alguém como Miguel, com maior conhecimento de vida e, por isso, com a mente bem mais aberta que o pessoal da sua cidade. Miguel era o tipo de pessoa que João queria como amigo e a outra pessoa, com certeza, também seria, afinal, era amiga de Miguel.

Eles se despediram. João pegou o ônibus e Miguel foi a pé. João pensou em como Miguel era divertido e por que se interessou em conversar com ele mesmo tendo outras pessoas ali tão interessantes. Miguel pensou em como João era tenso e em como era bonito e inteligente, mesmo sendo tão novo. Os dois foram para a cama cedo. João estava quase dormindo quando o celular tocou. Era a mensagem de um número desconhecido.

“Foi ótimo ter sua companhia no recital hoje. Amanhã, no parque, será ainda melhor. Espero você aqui em casa naquele horário. Abraço! ”

Não tinha assinatura, mas era Miguel, seu mais novo amigo. Esse era diferente de todas as pessoas que ele já conheceu. Isso o deixava feliz e, por isso, ele sorria. Sorria, como sempre, mas o brilho que carregava agora era diferente

Comentários

Há 1 comentários.

Por Eu Mesmo em 2017-01-29 22:39:37
Promete