Entre Duas Partes De Uma Só Pessoa.

Conto de Guilhermewriter como (Seguir)

Parte da série Entre Duas Partes De Uma Só Pessoa.

— É apenas isso, senhor?

— Essas são as únicas coisas que precisarei — diz Murilo. — O restante não é meu.

O homem de estatura média na frente de Murilo o encarou esperando por alguma demonstração de fragilidade, por consequência das últimas palavras pronunciadas, e não obteve nenhum sinal no olhar impassível de Murilo, que se manteve firme na calçada de sua casa.

— Nós já podemos ir? — questionou Murilo após alguns segundos em silêncio, exasperado.

— Mas é claro, senhor — disse o homem desaparecendo pelo contorno do caminhão com os olhos no chão.

Murilo manteve o olhar erguido em direção ao outro lado da rua, encarando as casas vizinhas. Parecia, pelo modo como ele estava parado, que ele estava tirando algumas fotografias em sua mente do lugar e que estava inspirando todo o ar que seus pulmões suportassem. De algum modo, ele sentiu a necessidade de fazer isso em plena luz do sol antes de entrar no caminhão que o levaria para sua nova residência.

Por todo o percurso, o homem de altura média tentou, inutilmente, conversar com Murilo, que só respondia o que lhe era perguntado, de modo lacônico e sem dar muitos detalhes.

Murilo, cansado daquela maneira desesperada do homem em iniciar e manter uma conversa, decidiu colocar seus fones de ouvido e fechou seus olhos, deixando explícito que ele não queria conversar.

Assim, seu cérebro danificado o levou até as profundezas de suas lembranças, trazendo à tona toda a dor que um dia sentiu quando foi abandonado pela mãe, pelos caras por quem havia se apaixonado de forma abrupta e pela tristeza escorrendo dos rostos das pessoas que ele viu fraquejar em sua frente. Era, sem sombras de dúvidas, lembranças melancólicas, e Murilo sabia que se estivesse com os olhos abertos, as lágrimas iriam escorrer por suas bochechas finas, pelo simples fato de sentir uma poça de água ser abalada por um nova onda de emoção. Em silêncio, sua alma estava se debatendo.

Antes que ele sentisse a dor de esfaquear seu interior, o caminhão parou, levando o corpo sem cinto de segurança de Murilo para frente e fazendo-o abrir os olhos e levar as mãos para frente, tudo em busca de se segurar.

De uma forma desajeitada, Murilo voltou para sua posição inicial e direcionou seu olhar para o homem ao seu lado, que o encarava com um semi-sorriso.

— Chegamos, senhor — diz ele, se sentindo triunfante pela forma como a vida o surpreendia com as pessoas.

Murilo o olhou friamente com seus olhos escuros por um tempo e, depois que o homem já estava cabisbaixo, desviou seu olhar para o prédio ao seu lado.

A cor do grande prédio a sua frente era de uma tonalidade preta, no entanto com as chuvas e com a falta de dinheiro, o preto ficou tão fraco a ponto de parecer cinza desbotado.

Na maioria das janelas fechadas estava uma placa de vende-se bem grande e com números de imobiliárias. O restante das janelas que não continham placas de imobiliárias estava abertas e com cortinas, na maioria das vezes brancas, voando com o movimento do ar. Era para ser um verdadeiro espetáculo se não fosse pelas rachaduras perto das janelas.

— O senhor pode me ajudar a levar essas malas lá para cima?

O homem aquiesceu e seguiu para a traseira do caminhão.

Segurando, sem exercer muita força, uma mala e deixando a outra para Murilo, o homem subiu as escadas que davam para a entrada do prédio e pressionou o pé para segurar a porta enquanto Murilo vinha logo atrás. Ele esperou que Murilo entrasse e seguisse até o elevador para ir atrás, por conta de não saber o andar.

Quando, enfim, deixou as coisas no apartamento 323 e pegou seu dinheiro, o homem, deixando Murilo sozinho com duas malas e um colchão que já estava no chão.

— A partir de agora será assim: eu e aquilo que possuo — sussurrou, olhando para o apartamento e notando que era pouco o que ele possuía.

Com essa imagem, Murilo mergulhou no sofrimento que sentiu desde criança, quando suas lembranças começaram a se fixar na sua mente, e se sentou em posição fetal para tentar segurar a própria dor que invadiu seu peito.

"Mamãe gostava de brincar comigo sempre que podia e me fazia cócegas antes de dormir. Ela costumava inventar histórias, tanto no papel para ler quanto na mente, e eu imaginava cada cena que era colocada em questão, como se eu estivesse nela. E, de certa forma, eu estava sempre em suas histórias, sendo o herói ou o aventureiro. Quando completei 6 anos e as brigas entre papai e mamãe aumentaram, todas as noites eu passava sozinho com uma lanterna e uma cabana montada no canto escuro do meu quarto, e eu me decepcionava por não conseguir montar as mesmas histórias que mamãe de um modo tão espontâneo. Era realmente importante para mim tê-la ao meu lado, ainda mais por conta do distanciamento que papai sempre tivera comigo, pensou Murilo".

Com todos os pensamentos gritando na mente de Murilo, ele adormeceu sentado no colchão fino no meio da sala e com uma pequena poça de lágrimas.

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