Entre Duas Partes De Uma Só Pessoa.

Conto de Guilhermewriter como (Seguir)

Parte da série Entre Duas Partes De Uma Só Pessoa.

Em pé, diante de um grande espelho retangular e com bordas douradas, um rapaz se encara no intuito de ajeitar os últimos detalhes antes de sair de casa.

— Chegou o grande dia — diz, com os olhos fixos no reflexo de seu rosto repleto de expectativa.

O suor frio, com a proporção que o medo aumentava dentro dele, tornou suas linhas de expressões, escondidas pelo vapor quente do banho, visíveis. Enquanto isso, esconde outro resquício de suor com suas mãos dentro dos bolsos da calça.

— Está na hora de irmos. — Uma mão envelhecida segura o ombro do jovem de frente para o espelho

Confirma com o olhar e o segue até a saída.

Se a porta de entrada e, depois, a porta do carro não se abrissem, com certeza veria isso como um sinal negativo. Ele pediria ao seu pai que fosse em sua frente e que não teria nenhum problema em ele pegar um ônibus mais tarde, já que estava muito adiantado do horário marcado. No entanto, todas as portas se abriram e todo seu planejamento foi inútil.

Por ser uma caminhonete velha e com muitos anos sem revisão, o carro seguiu o caminho, mostrado na tela do GPS, com velocidade estável de 50 km/h. E isso fez pai e filho vislumbrarem seus possíveis futuros.

João Foster sempre foi um homem de personalidade forte, que nunca demonstrava seus sentimentos e de poucas e essências palavras. Desde pequeno ele aprendera que homem não deve ser a parte sentimental da história e que seus sentimentos devem ficar presos dentro de seu próprio peito, isso porque, depois que a mãe de Peeter se separou dele, ele nunca mais acreditou que existia sentimentos em seu coração. O que ele estava desesperadamente enganado. Sem demonstrar e achar não sentir, ele seria capaz de morrer no lugar de seu único filho, e se isso não for um sentimento, não há maneira de descrever qualquer outro.

Tendo sido criado apenas pelo pai, Murilo acabou parecendo com ele mais do que gostaria enquanto sua mãe ainda não os havia abandonado. Ele pegou da criação do pai seu jeito taciturno de ser e seu modo de não demonstrar afeto. Além e por conta desse aspecto, ele é um rapaz de poucos amigos, e que nenhum deles é próximo. Entretanto, ele ainda possui o sorrio cativante e o olhar misterioso da mãe.

— É isso o que você realmente quer? — diz João, tirando Murilo de seus devaneios. — Digo isso porque talvez seja melhor você ir comigo cuidar dela. Querendo ou não, você é o filho dela.

Peeter reflete sobre o que o pai acabara de dizer e chega a conclusão de que ele precisa seguir seus próprios passos sozinho. Ele sabe que se for cuidar da mãe acabará desistindo de seus sonhos e abandonará todo seu planejamento de vida antes mesmo que venha a entrar nos trilhos.

— É o que sempre quis — diz, olhando fixamente para frente.

Talvez com meu olhar através do vidro eu consiga ser mais forte que os olhos investigativos que me encaram de modo um tanto incômodo, pensou Murilo ainda com os olhos sem piscar.

— Não mudarei minha meta por conta dela — diz Peeter, desviando o olhar do vidro e levando-o até encarar os olhos escuros do pai. — Deve ser outro coração partido por um outro vagabundo ter abandonado ela, e eu não vou cair nessa mais uma vez.

Daiana sempre foi uma mulher que colecionara homens ruins para sua lista de amantes perfeitos. Ela sempre acha que são uns diferentes do outro, no entanto são todos exatamente iguais depois de duas semanas. Vendo pelo lugar em que ela os conhece é nítido que tudo se repetirá, lugar esse que é pior do que um bar de cidadezinha pequena e que seus frequentadores são apenas homens viciados, tanto em drogas quanto em álcool. Apesar de suas escolhas se tratando de relacionamentos só ter dado certo uma vez e ela ter abandonado a chance, Daiana é um boa mulher. Ela sempre busca ser bondosa e gentil com as pessoas. Se alguém estiver precisando dela e ela poder ajudar, ela abandonará tudo para acolher essa pessoa é ajudá-la, e essa característica também pode ser encontrada em Peeter, apesar de ele lutar bravamente contra esses aspectos semelhantes aos da mãe.

— Pronto — diz João. Em sua voz havia uma certa raiva contraída que Peeter suspeitou ser por conta de ter rejeitado, mais uma vez, a proposta do pai de ir com ele para o Brasil cuidar da mãe.

— Muito obrigado, pai, por ter me trazido até aqui — sussurra Murilo abrindo a porta da caminhonete.

Por um segundo, Murilo supôs que o pai diria alguma coisa ou que acenaria para ele, fazendo, de ambas as formas escolhidas, um gesto de despedida. Porém, depois de um minuto e meio, ele teve certeza de que tudo não se passava de sua própria imaginação infantil implorando por atenção.

E, em velocidade média, Murilo, aos poucos, deixou de ouvir os barulhos da lataria enferrujada.

Na rua Viamonte, em frente a Universidade de Buenos Aires, Murilo se encontrava cabisbaixo. Ele sabia que o pai não mudaria seu modo de tratá-lo de uma hora para outra e que sempre as coisas seriam assim — se fosse um grão, ele nunca chegaria a se tornar uma planta, porque não havia vida para regar suas esperanças. Entretanto, ele sabia que sua vida não iria mais depender, na maior parte do tempo, do afeto não recebido dos pais. Agora, Murilo dependeria de si mesmo para viver mais uma etapa de sua vida, assim como quase todas as outras.

Que os céus notem o quanto estou me esforçando para conseguir viver uma nova etapa da minha vida agora que agarrei de volta as rédeas, pensou Murilo, levantando a cabeça para enxergar o grande e belo prédio da universidade.

Assim, dado o pedido aos céus, Murilo caminhou, a passos lentos, pelo espaço retangular cimentado, vendo e contemplando a imagem a sua frente.

No grande prédio da universidade haviam quatorze pilares incrivelmente grandes e escrupulosamente feitos, todos uns iguais aos outros. O prédio também era de uma altura dificilmente calculável e com características semelhantes aos casarões e castelos do século XIX, desde sua cor até suas diversas e grandes janelas. Em suma, vê-lo é como se transferir para o século XIX. Todavia é só desviar o olhar encantado da antiga construção e direcioná-lo para a rua, lugar em a maioria das construções são recentes e trazem uma nítida visão da modernidade, que se volta ao atual momento.

Após todo o deslumbramento e ter sido levado até o passado, Murilo adentrou pelo grande prédio, que se mostrava ainda maior por dentro, com todas suas características do romantismo e, nos pequenos detalhes, do barroco europeu. Seus olhos rodopiaram, como um bom dançarino ou curioso que era, pelo pátio e pelas escadarias que levavam ao segundo andar.

— História, filosofia ou linguagem?

Peeter, abruptamente, saí de seu estado investigativo e lança seu corpo para trás.

— Oi? — diz Murilo ao ser segurado, sem exercer muita força, por uma jovem mulher.

Seu olhar foi o suficiente para que a jovem em sua frente se apressasse em se explicar.

— Você me parece perdido. Por isso que questionei você. Talvez eu possa lhe ajudar a encontrar sua sala — diz, sua voz soando um pouco mais calma.

Murilo lançou seu olhar para o lado por um segundo, fechou seus olhos com força, memorizando aquela desconhecida dizendo que ele parecia estar perdido, e voltou seu olhar para encará-la com determinação, a mesma que se encontra em um rei.

— Sinto muito pela minha chegada nada normal. — Peeter se questionou se havia algo normal no universo e deu-se conta de que isso era um significado individual. — Meu nome é Flávia — disse ela, esticando as mãos para cumprimentá-lo.

As mãos de Flávia foi analisada com certo profissionalismo, dando ênfase nos nós de seus dedos.

— E o seu? — Aquela indagação surgiu na mente de Flávia para tirar o olhar daquele estranho de suas mãos e lancá-lo para seu rosto, fazendo-a cerrar seus olhos e demonstrar seu estranhamento.

Murilo, ao notar o silêncio que irrompeu, inflou os pulmões e voltou a encarar a jovem em frente, agora com uma postura diferente e ainda com a mão estendida em sua direção.

— Meu nome é Murilo — diz ao segurar a mão de Flávia. — Na verdade, eu não pareço perdido, eu estou. — Inutilmente, ele tentou não soar ríspido e, com isso, abriu um sorriso sem mostrar os dentes brancos.

Flávia sabia reconhecer uma pessoa perdida, por conta de ela mesma ter sido uma quando chegou nesse país. Perdida entre um novo mundo e dois adultos que não a compreendiam.

— Não se preocupe — diz, colocando a mão no ombro de Murilo. — Para ficar mais fácil para ambos, qual sala você está procurando?

— Então, eu estou procurando a secretária. — Seus ombros relaxaram com a saída do ar que prendia dentro de seus pulmões. — Eu vim hoje apenas fazer minha matrícula.

Os olhos de Murilo expressaram uma sensação de pânico ao ouvir um som estridente que saía dos altos falantes da universidade. Ele olhou para os lados em busca de conferir se estava tudo bem e se não era a sirene de incêndio, após se certificar de que estava, voltou seu olhar para Flávia, olhando para ele com um olhar divertido agora.

— Caso um dia venha a ter um tempo livre, por favor, entre em contato comigo para marcarmos uma consulta — diz, rindo como se fossem amigos há anos. — Terei muito prazer em estudar sua estranheza.

O olhar de Murilo foi mudado para uma tonalidade diferente. Seus olhos verdes-escuros ficaram em um verde tão suave, que mais se parecia com azul-céu. E, com essa mudança visual, ele soltou um gracejo inaudível, mostrando apenas seus lábios abertos e largos.

— Tenho que ir para a aula. Tenho um trabalho para apresentar agora na primeira aula — diz Flávia, segurando as alças de sua mochila com firmeza, assim como uma colegial. — A secretária é naquela direção. — Seus dedos e seus olhos apontavam para a direta. — Você encontrará com facilidade, é só seguir essa faixa preta no chão.

— Obrigado, Flávia — diz Murilo, com a voz mais grave por conta da jovem estar andando disparada pelas escadarias.

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