Se For Com Você - Parte 17

Conto de calango como (Seguir)

Parte da série Se For Com Você

.::17::.

Lembro-me de pouca coisa do trajeto entre a mesa e o banheiro. Na verdade, o lugar exato em que o toalete se encontrava continua sendo um mistério. Em meus flashes mentais: esbarrei em uma senhora de chapéu sentada perto da escadaria (“olha por onde anda, manguaceiro!”), quase cai ao subir os degraus tendo de desviar do músico, gesticulei algo incompreensível para a garçonete, que apenas apontou uma direção nos fundos do casarão, e, quando dei por mim, já estava de joelhos em um box. Despejando na privada pedaços de carne e uma pastosa mistura alaranjada que só podia ser a combinação de vinho com batata-baroa, amaldiçoei a mim mesmo.

Fiquei algum tempo sentado no chão, a cara deitada em cima do braço que se apoiava no assento da privada. Da boca pendia uma linha de saliva que ficou balançando insistentemente até cair e se juntar ao mar de detritos parcialmente digeridos. De repente, a porta do banheiro se abre e escuto a voz do Leandro:

– Edu! Onde você tá, cara?

Respirei fundo e abafei um soluço de bêbado. Silêncio. Não estava disposto a deixá-lo me ver naquele estado deplorável. Mas foi com tristeza que descobri que minha intenção não era nada perto das necessidades fisiológicas do corpo. Necessidade esta que era, naquele momento, soltar o segundo jorro de vômito. Mergulhando a cara no buraco negro onde havia terminado minha saída, vomitei novamente e o barulho denunciou em qual box eu estava. Droga.

Ele bateu algumas vezes. Por sorte, tive coordenação motora suficiente para fechar o trinco da porta antes de me ajoelhar. Respirando profundamente, como se todo meu oxigênio também tivesse ido com as golfadas, o ouvi impaciente:

– Du... Não sei se você tá com vergonha pelo que disse na mesa ou se não quer que te veja assim. Mas abre, por favor...

Ele nunca havia me chamado de “Du” antes. Será que estava com pena, afinal? Até podia imaginar o que o Leandro pensava de mim. O garoto rejeitado que não aguentou ver o objeto de desejo com outro e precisou beber até cair para esquecer que sua vida é dentro de um armário. Olhando para o jantar recém-expelido boiando, reparei com ironia que minha vida amorosa estava mais bagunçada que aquela água de privada. Esfregando os olhos com os dedos e já me sentindo melhor, disse:

– Vaza... Vaza daqui, Leandro. Não preciso da sua ajuda.

Ele deu uma última pancadinha na porta fechada e pude jurar que havia se encostado nela.

– Beleza, eu não preciso te ajudar, cara... – e inspirou fundo antes de concluir. – Só quero saber se você tá bem.

“Quer saber se eu tô bem por que quase regurgitei uma cascata em cima da mesa ou por que vi você beijando outro cara? Eu tô devastado, Leandro, e você sabe. Você torceu meu coração em várias direções diferentes sem se preocupar em como ele ficaria depois de ser desamarrotado. Sua ligação pra Alexia não devia ter sido feita e esse encontro nunca deveria ter acontecido. Pensando bem, o ideal seria se pudesse entrar em uma máquina do tempo e alertar meu Eu do passado da cilada em forma de boliche que aquela sexta-feira se tornaria”.

– Eu tô ótimo. Agora pode ir – foi só o que consegui falar do interior do box.

– Não faz assim... – ele persistiu na tentativa de me convencer. – Entendo que você tenha ficado chateado. Mas eu não podia simplesmente fingir que não sou mais amigo da Alê e ignorá-la indefinidamente, velho... Eu dei um tempo, vocês fizeram a recuperação, passaram de ano... Achei que já era hora da gente voltar a se falar, sabe, tentar colocar uma pedra em cima do passado e...

Abri a porta de repente, num rompante, interrompendo sua fala e causando uma expressão de espanto em seu rosto. Olhos nos olhos, dei o olhar que ele tanto evitou encarar a noite inteira. Sem piscar e fazendo com que ele desse um passo para trás, perguntei:

– Por que você mentiu pra mim?

O Leandro sabia muito bem do que eu estava falando: aquela declaração de que ele estava namorando alguém na metade de fevereiro, quando na realidade esse alguém só foi aparecer no final do mês. Seu namorado havia entregado o dia do primeiro encontro e ele reparou que eu tinha me atentado a isso. Tentando sustentar o olhar impassível, ele se defendeu:

– Você... você sabe o porquê. Quis preservar a Alexia e sabia que pra colocar um fim no que aconteceu eu... tive de ser radical, Edu. Ia ser mais fácil pra você esquecer – e com a voz fraquejando, completou. – Pra gente esquecer.

– Até quando vai usar a Alexia como desculpa? Por que você não admite logo que se arrependeu de ter me beijado e usou essa historinha de namoro só pra que eu largasse do seu pé?

– Cara... Você não entende, ela...

Nesse instante, a lavação de roupa suja foi interrompida pela entrada de um senhor de meia-idade. O sujeito bigodudo adentrou no banheiro assoando o nariz de modo estrondoso, nos cumprimentou com um aceno de cabeça e seguiu para o mictório mais ao canto. Querendo puxar assunto e vendo que estávamos constrangidos, ele arriscou uma piadinha com voz roufenha:

– Vocês sabem como desliga aquele violino dos infernos, garotos? Sou capaz de dar cem contos pra quem derrubar aquele cara da escada! Hahaha

Nossa risada foi o esboço de um projeto de riso. Reparando que não éramos as criaturas mais sociáveis para se interagir em um banheiro, ele se calou e limitou-se a pigarrear. Aproveitei a pausa para lavar o rosto na pia, enquanto o Leandro sacou seu celular e escrevia uma mensagem com olhos perdidos. Provavelmente avisando ao César que em breve voltaríamos para a mesa. Só o que escutamos durante os dois minutos mais arrastados da minha vida foi o barulho do cara mijando e a água da torneira jorrando. Com o reflexo no espelho de cabelos oleosos e olhos vermelhos por ter lacrimejado ao vomitar, fiz o possível para deixar de parecer um parente distante da família Addams.

O senhor se despediu sem jeito após lavar as mãos e nos deixou sozinhos, com um silêncio maior do que aquele banheiro parecia suportar. De cabeça baixa, olhando para o piso em motivos geométricos, o Leandro prosseguiu:

– A Alexia... Eu suporto vê-la descobrindo que o namorado é gay. Ela vai sentir uma dor do tamanho do mundo, mas vai superar... vai sim... Vai superar e recuperar a confiança nos outros aos pouquinhos, porque isso é algo que ela tem dentro dela, entende. Ela... – ele falava com tanta dificuldade que era como se cada palavra fosse uma cutucada em ferida aberta. – O que eu não aguento é ver a pessoa que salvou minha vida sofrendo duplamente, por perder o namorado e o amigo de uma vez só.

“A Alexia salvou sua vida? O que você quer dizer com isso, Leandro? Olha pra mim, cara... Por favor, olha pra mim” eu pensava enquanto o coração martelava no peito. Olhar ainda preso no chão, ele continuou:

– Você diz que eu me arrependi de ter te beijado. E como eu queria que isso fosse verdade, cara. Seria mais fácil. Seria... Eu sentiria peso na consciência de ter sacaneado uma pessoa foda como a Alê, mas seria minha única punição. O problema é que... – sua voz ficou cada vez mais baixa, quase inaudível, quando finalmente terminou. – Eu não me arrependi.

“Olha pra mim, Leandro”.

E então ele levantou o rosto. Uma lágrima grossa descia na metade da sua bochecha e chegava em sua barba. O Leandro tinha um choro silencioso. Diferente de mim, que quando chorava era com a cara contraída e sem conseguir parar ao começar. Foi naquele momento, vendo todo aquele conflito interno e a lágrima solitária, que reparei. Ele era o tipo de pessoa que havia aprendido a sofrer calada, sem testemunhas. Sozinho.

– Eu disse que namorava pensando que... – e passou a mão no rosto, enxugando a lágrima. – Que essa seria a maneira mais fácil de esquecer aquela tarde, já que assim te afastaria. Mas não foi, Edu. Eu tenho sonhado, sabe... E mesmo não te vendo mais, você aparece nesses sonhos. Você aparece e eu não sei o que fazer, porque tudo que eu queria era ter continuado naquele quarto até hoje. Vai soar ridículo, vai soar brega, eu sei, mas a impressão que tenho é que...

Mas ele parou de falar assim que o abracei. Eu, que sempre morri de medo de demonstrar o que sinto, o abracei com força. Mesmo tendo acabado de vomitar e correndo o risco de alguém entrar no banheiro a qualquer momento. Simplesmente não consegui escutar ele falando sem trazê-lo para perto de mim, assim como no sonho em que eu já não ligava se todos da minha rua nos descobrissem. Comprimindo seu corpo contra o meu, fiz um carinho em sua nuca e reparei que ele já enxugava a segunda lágrima. Deslizando meu nariz na lateral do seu rosto, até aproximar minha boca do seu ouvido, sussurrei:

– Por que você me derrubou no chão aquele dia, cara? Por que você foi fazer aquilo...

– Não sei, Edu. Não sei... – e continuou após um tempo, os dedos apertando minhas costas com mais intensidade. – Eu derrubei, mas você quem terminou em cima de mim no final, lembra? E continua por cima, até hoje. Só não sabia disso.

Não pude evitar o riso, que abafei pressionando meu rosto contra seu pescoço. Até num momento dramático como aquele o Leandro conseguia se manter espirituoso. Enquanto voltava a sentir o cheiro do seu perfume, fomos surpreendidos pelo barulho da porta se abrindo e imediatamente nos desvencilhamos um do outro.

Por sorte, o César não nos viu juntos. Parado ao lado da porta, com cara de poucos amigos, olhava para o Leandro como quem quisesse entender qual o motivo da demora, já que eu parecia bem depois de ter vomitado. Senti-me na obrigação de quebrar o gelo, após a saraivada de comentários indelicados à mesa:

– Escuta, César... Desculpe pelas merdas que disse na conversa sobre cinema – e completei depressa, ao me lembrar. – E pela observação que fiz sobre o namoro de vocês, claro. Eu não tive a intenção de ser escroto, te juro. É porque estou passando por uns... ahnn... problemas pessoais. Daí descontei em todos vocês. Foi mal. Te peço perdão também, Leandro.

O Leandro fez um gesto com a mão indicando que aquilo não foi nada com o que me preocupar. Olhando pra mim com o rosto menos tenso, o César disse:

– Tudo bem, cara... Deixa pra lá – e dirigindo-se para o Leandro, puxou-o para perto de si pela cintura, de olho na porta. – Vim porque sua namorada pediu para descobrir se você tava vivo. Disse que tava quase pra entrar aqui, mesmo sendo um banheiro masculino.

– Típico da Alex mesmo.

Voltando para a mesa, os dois foram na minha frente, lado a lado e roçando uma mão na outra de vez em quando. O que senti pelo caminho foi um duelo de sensações. Estava dividido entre o sentimento de vergonha, por estar passando por todos aqueles que me viram correndo em direção ao banheiro com a mão na boca, e os ciúmes, ao assistir de camarote aquela tentativa de camuflar a intimidade com gestos minimalistas.

Descendo a escadaria já podia ver o contorno da Alexia ao longe, emoldurada pela claridade da luz que vinha do castiçal. Braços estendidos sobre a mesa, segurando o celular, eu podia apostar que estava jogando Candy Crush enquanto lutava para manter os olhos abertos. Se o álcool me deixa mais brigão, na Alex o efeito é de sonífero tardio. Quando me aproximei o suficiente para que ela me visse, escutei:

– Finalmente, meu bem! Já chamei o táxi e você vai ouvir um monte no caminho, caso eu não durma. E não ri que é sério! Agora vamos esperar lá na frente porque o César até já pagou e não me deixou dividir a conta – e descontraiu, vendo que eu ficava corado de vergonha. – E pensar que a atendente te chamou de cavalheiro quando chegamos. Eduardo, Eduardo... Tome tento!

“Que ótimo. Gente boa, bonito, culto e ainda pagou tudo enquanto eu vomitava”, pensei com ironia.

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Eae, galerinha?! :-) Que estão achando da história até o momento? Deixe seu comentário! Feedback é sempre maravilhoso para o autor e eu leio tudo que vocês escrevem!

Abaixo, meus contatos de e-mail e Wattpad, para quem quiser enviar algum recado ou acompanhar minha história em outro site:

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Abraços e beijos! Até a próxima! =D

Comentários

Há 7 comentários.

Por Luã em 2016-03-26 09:46:30
Acho que o Cesar viu que tinha algo a mais entre eles quando ele entrou no banheiro, hein? E a cena dos dois se abraçando foi muito fofa, eles se acertando de novo! Já são um dos meus shipps supremos <3
Por em 2016-03-26 04:13:14
Amoo esse série, excelente escritor você, Estou viciado querendo mais, torcendo pelo De e Leandro!! Ansioso para ver o que acontecerá hehehe
Por Ali T. Jones em 2016-03-26 03:06:33
A série é maravilhosa! De verdade, só não faz eles machucarem a Alex, por favor! Deixa o Leandro e o César juntos. Pedidos que provavelmente serão ignorados haha. Beijos, com muito amor de leitor ❤.
Por oLeitor em 2016-03-25 17:42:19
Excelente como sempre! Você leva a gente na curva da ansiedade até quase derrapar, kkkk daí as coisas dão uma guinada e engatam em outra direção. Tenho vontade de saber spoilers às vezes, de como vai terminar. Mas ao mesmo tempo,não. rs Gosto da sensação de expectativa, mas da um agoniaaa..kk Parabéns, mto bom
Por Rick134 em 2016-03-25 16:58:22
Mt bom o capítulo, estou mt, mt, mt ansioso para saber mais de como tudo isso se desenrolará... Parebéns Ótima escrita.
Por Dougglas em 2016-03-25 13:47:37
Acho que uma sessão de vômitos nunca pareceu tão leve de se ler kkkkk. Tua escrita está muito boa, e se o capítulo anterior foi cheio de intriga, esse foi uma quebra de tensão com todo esse sentimento envolvido entre os dois. E fiquei bastante curioso pra saber como vão ficar as coisas entre eles. Acho que a Alex não eh tão ingênua quanto parece, e já deve ter sacado algo. Talvez ela fique magoada, mas acho que no fim ela vai acabar sendo a favor dos dois. Ela ama ambos, e o namorado sendo gay, porque não apoia-lo com o melhor amigo depois de se recompor da tristeza? Pera, to pensando muito à frente Kkk. Não demora, to aqui curioso pra saber o que vai acontecer agora. Parabéns pela história *--*
Por Anjo perdido em 2016-03-25 13:12:42
Vocês merecem um processo por me deixarem tão curioso com o que vai acontecer e como a coisa vai se desenrolar, cara sua escrita evoluiu muito, se tornou mais envolvente e instigante do primeiro capítulo pra cá meus parabéns